O curso de Relações Internacionais da Unisc promoveu, em março de 2010, uma palestra com o tema Haiti: um país de contrastes
. A atividade foi ministrada pela professora Mariana Corbellini, do Departamento de Ciências Econômicas, que esteve no Haiti em 2008. Na entrevista a seguir, a professora apresenta alguns aspectos sobre a situação do Haiti e a atuação da ONU e do Brasil nesse país que não é apenas o mais pobre das Américas, mas também possui enorme beleza e riqueza cultural. Ela falou ainda sobre os avanços e as perspectivas para o país.Jornal da Unisc - O que a levou ao Haiti e quando foi?
Mariana Corbellini - Eu fui para o Haiti em março de 2008, mas na verdade eu comecei a me interessar sobre essa temática ainda na graduação. Em 2005 tive a oportunidade de fazer um trabalho sobre o tema, um ano depois de as tropas brasileiras terem sido enviadas para lá. Então eu resolvi seguir estudando sobre o Haiti no mestrado em Relações Internacionais, na Ufrgs, onde realizei um trabalho sobre as operações de paz das Nações Unidas. Foi aí que surgiu a oportunidade de acompanhar um grupo de estudantes e professores da Universidade Federal de Santa Maria, da Faculdade de Direito de Santa Maria, que estavam indo para o Haiti, para passar dez dias. Não era nada muito extenso, era para fins de estudo, e fomos acompanhados do professor Ricardo Seibert, que é um grande conhecedor do Haiti e, inclusive, é atualmente um enviado da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti. Ele queria conversar com autoridades haitianas, autoridades da missão, enfim, a respeito do auxílio para a reconstrução do sistema jurídico do Haiti. Acompanhamos o professor Ricardo em algumas de suas reuniões. Então eu tive a oportunidade, por exemplo, de conhecer o prédio da Minustah, que é a missão da Onu no país, e que acabou desabando no terremoto.
JU - Em que situação você encontrou o País?Mariana - Olha, quando eu fui pra lá eu já sabia que, liderados pelas tropas brasileiras, eles já haviam pacificado algumas ondas críticas. Mas eu não tinha muita noção do que isso queria dizer. Então eu fui para lá preparada para uma guerra. Achei que eu ia para um país em guerra. E não era essa a situação. Na verdade, a situação do Haiti nunca foi uma situação de guerra. O que ocorreu foi um problema de insurreição, devido a instabilidades políticas que são recorrentes no país e que, enfim, eclodiu uma situação de violência generalizada em fevereiro de 2004. E com a saída do presidente, a questão da instabilidade política ficou ainda pior.
JU - O terremoto foi apenas mais um dos tantos problemas enfrentados pelo País. Quais são as raízes de tantos conflitos?Mariana - Bom, existem especulações se o presidente foi retirado pelos Estados Unidos e pela França, ou se ele se eximou. Eu acredito que tenha sido uma saída estratégica, até em virtude de que o país estava incontrolável e ingovernável. Ele deixou o país e seu sucessor entregou o país diretamente nas mãos dos Estados Unidos, França, Chile e Canadá, que formaram uma força multinacional de paz para preparar o terreno para a entrada da missão. A Minustah acabou tendo que entrar no país e a idéia inicial seria a tentativa de restabelecimento de um diálogo político. Mas esse diálogo ficou muito comprometido devido ao fato de que eles tinham grupos, bandos armados e trabalhavam em virtude de grupos de partidos políticos. Então esse era o problema que existia no país. Existiam grupos políticos rivais e essa rivalidade perpassava para a questão da violência, mesmo, com a atuação de bandos armados, em especial, nas favelas. E tudo isso envolve tráfico de drogas, pobreza, todas essas questões. Dessa forma, a tentativa de um diálogo político não foi efetiva até que se tentasse a questão do apaziguamento, que foi a segunda fase da missão.
JU - De que forma o Brasil tem atuado nessa missão de paz e por que sempre estivemos na linha de frente?Mariana - Foi a partir de 2006 que o Brasil passou a liderar essa vertente militar com suas tropas. Não é a liderança da missão como um todo, mas sim na questão militar. As tropas acabaram entrando nas ondas críticas e conseguindo um apaziguamento dessas ondas. Isso possibilitou a prisão de chefes de gangues e o desmantelamento desses grupos, possibilitando retomar o diálogo e manter o controle. Então, quando eu fui para lá, em março de 2008, a missão já estava numa terceira etapa. Isso era questão de fortalecimento e criação de instituições. Para que um país exista é necessário ter determinadas instituições.
JU - Qual a origem dessa relação do Brasil com o Haiti?Mariana - A origem tem muito ver com a própria linha de política externa que é seguida pelo governo Lula, de uma maior inserção internacional, uma demonstração de que o Brasil pode atuar como mediador de conflitos. Na verdade o Brasil tem, em termos diplomáticos, uma característica, presente já, e bastante estável, de mediação de conflitos. O que aconteceu agora, com esse último governo, é que a gente pegou um pouco disso e acrescentou a uma necessidade que o governo via, de uma maior inserção do Brasil no sistema internacional. O Brasil quis aparecer mais em virtude de querer uma cadeira permanente no conselho de segurança, ter uma participação maior. Também teve o convite da França, pois Haiti e França tem lá seus laços estreitos devido ao fato de o Haiti ter sido colonizado pela França. E naquele momento a França precisava de um país que tomasse a frente. Há ainda a questão da proximidade.
JU - E como a ONU tem atuado? Tem cumprido o seu papel? Mariana - De certa forma, sim. O que acontece é que, desde a década de 90, as declarações de paz da ONU têm um mandato, os objetivos dela são muito amplos. Isso porque, normalmente, elas atuam em conflitos que são internos e que acarretam uma série de outros problemas, de desenvolvimento, de necessidade de criação de instituições, tudo o que acontece dentro do Haiti. Então a ONU pega para si, como objetivos, restabelecer o sistema do país, melhorar o desenvolvimento, todas essas questões, e isso é muito complicado. Não é um problema do Haiti, em específico. É um problema das operações de paz da ONU, em geral, que querem fazer muita coisa e isso é complicado, precisa ser feito em etapas.
JU - Qual a situação atual do Haiti? Houve algum avanço na questão social e política?Mariana - Quando, enfim, estive lá, eu percebi que eu não tava numa guerra. Eu entrei em Citê Soleil, que era uma das favelas mais complicadas de lá, sem colete à prova de balas, sem capacete. Claro que acompanhada de militar, mas a gente ficou um tempo lá e visitamos escolas, entregamos doces para as crianças, foi super tranqüilo. Então, essa questão foi a que teve maior participação brasileira, que teve êxito, e que por isso o Brasil tem se destacado tanto nas questões de operações de paz. E agora tem todas as outras questões, como a do diálogo político, que é muito complicado por questões culturais, da tradição de autoritarismo, da cultura da força que existe no Haiti desde o início dessa história. Essa questão do diálogo político está inserida no estado, já está inserida no contexto, é difícil mudar. A idéia era de que fosse concluída até 2011. Agora já se fala em um prazo um pouco maior devido ao terremoto. E depois que essa operação sair ainda tem toda uma questão de desenvolvimento do país, porque criamos as instituições, reestruturamos o sistema jurídico, tudo que for necessário para que o país exista, mas a gente ainda tem 80% da população sem emprego. Com esse tipo de economia que se tem aí, como será possível? Qual é a viabilidade de um país assim? E tudo isso ainda é objetivo de uma outra missão. Agora eles precisam de mais gente, até porque o centro das operações ruiu, a ONU, ficou um pouco descoordenado depois do terremoto. Antes dessa questão de pacificação, da liderança das tropas, os militares brasileiros sempre atuaram na entrega de alimentos, de donativos e, agora, com a questão do terremoto, isso se intensificou. Se existe algo de positivo que se possa tirar disso tudo, é que pelo menos a comunidade internacional volta um pouco os olhos para o Haiti. E com o Haiti no centro das atenções, já se pode angariar mais fundos internacionais e tudo isso vai ajudando na reconstrução do país.
JU - Que perspectivas se pode ter em relação a esse País?Mariana - Ainda é muito cedo para dizer. A questão social e econômica é um problema que só vai poder ser resolvido a partir do momento em que o enfoque for o desenvolvimento, e esta ainda não é a situação que se pode encontrar no Haiti. Se a comunidade internacional continuar lá e, principalmente, se entrarem fundos para este país, há perspectivas. O grande problema é que o Haiti não tem nada que interesse a investidores, a outros países. E por causa dessa situação, a comunidade internacional não volta muito os olhos ao Haiti. Resumindo, não entra dinheiro. E o que o Haiti precisa é justamente de dinheiro, fundos, investimentos. Se houver uma mobilização maior da comunidade internacional nos próximos anos, e a partir do momento em que tudo estiver estabilizado, que a missão tiver cumprido seus objetivos principais, e que entre uma nova missão que trate da questão do desenvolvimento social e econômico, daí sim o país pode aos poucos começar a melhorar, a se estruturar, até que chegue o momento em que ele poderá caminhar com suas próprias pernas. Mas isso é uma previsão de longo prazo.