No filme Nos Bastidores da Notícia (Broadcast News), de 1987, o
personagem Tom Grunick, vivido por William Hurt, é um âncora de
telejornal narcisista e inescrupuloso que manipula o aspecto patético do
noticiário para ganhar audiência e, principalmente, prestígio
profissional. Na sequência-chave da trama, ele edita um VT inserindo
imagens de si mesmo chorando ao escutar o relato de uma entrevistada,
vítima de estupro. Mas os métodos antiéticos e o jornalismo emocional e
grotesco, na mesma medida em que o tornam queridinho dos chefes e
executivos da emissora, rendem a ele a crítica e o desprezo entre os
colegas.
O filme foi escrito e dirigido por James L. Brooks. No ano seguinte,
Brooks seria criador, junto ao desenhista Matt Groening, do desenho
animado Os Simpsons, uma das primeiras e mais contundentes
sátiras à estereotípica família de classe média norte-americana, saída
da Era Reagan com os valores exacerbadamente egocêntricos, materialistas
e fúteis, preocupados tão somente com o lazer e o dia de amanhã, e com
um desdém assumido por todo aprofundamento, toda crítica, toda
ponderação.
O pai da família-escárnio concebida por Brooks e Groening, Homer
Simpson, é uma figura simplória, trabalhador honesto porém disposto a
pequenas mentiras e jeitinhos para satisfazer vontades ou resolver
problemas. Desligado de questões que vão além de seu próprio jardim,
tudo que Homer almeja em cada episódio é manter-se confortável em sua
rotina, sem questionar o mundo, e refestelar-se no sofá após cada dia de
trabalho para assistir a televisão.
Informação em redes
Foi esse arquétipo que o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional,
William Bonner, elegeu para descrever o espectador médio de seu
telejornal, o de maior audiência no Brasil há décadas. Não apenas na
frente de professores como Laurindo Leal Filho, da USP, que chamou
atenção para o aspecto desdenhoso da comparação anos atrás (ver aqui o seu relato), mas também para estudantes de jornalismo levados a visitar a redação do JN – como eu, em novembro de 2005, então aluno da UFRJ (ver aqui a resposta
de William Bonner). Hoje, passados alguns anos de formação e
reprodução, o estilo Bonner/Homer (ou talvez Bonner/Grunick) parece ter
feito escola e já está normalizado, em certos círculos tratados como se
fosse “a” maneira de se fazer jornalismo.
Não fosse assim, não haveria espaço moral nem tolerância para a edição do Jornal Nacional
de segunda-feira (28/1), gastar preciosos minutos com autopromoção em
lugar de entrar direto com informações sobre a tragédia da boate Kiss em
Santa Maria (RS). Deixando o lide para segundo plano, o âncora William
Bonner preferiu descrever e apresentar ele próprio, a própria equipe,
seu deslocamento, suas habilidades e suas reações subjetivas ao
deparar-se com o fato, e não o fato em si.
Um take de Bonner dentro do jatinho particular apelidado de “JN
no Ar”, para fins de marketing, tem carga informativa nula sobre os 245
mortos no incêndio da boate Kiss, bem como a situação de seus
familiares ou a investigação sobre as causas e os responsáveis. Saber
que a equipe decolou do Rio de Janeiro ou foi deslocada de São Paulo,
Porto Alegre ou Buenos Aires para fazer a “suíte” da tragédia acrescenta
absolutamente nada para quem está ansioso por notícia, nomes, números,
histórias sobre o que ocorreu.
Este é apenas o trabalho dos jornalistas; não há nada ali para
jactar-se. Não são “bastidores da notícia” – neste caso, reveladores de
nada. Desperdiçar tempo de sinal ao vivo para promover seu próprio dever
de ofício em vez de exercê-lo (ou seja, informar) é pegar carona na
tragédia alheia para fazer marketing institucional. Além de narcisismo
típico de amadores, demonstra insensibilidade e desrespeito para com a
memória das vítimas, suas famílias e a população brasileira.
Uma nação que ficou consternada e solidária com a tragédia da Kiss não
está esperando propaganda travestida de noticiário; tampouco está
preocupada com avaliações passionais por parte de quem nem está
autorizado a fazê-las. O fato é trágico em si: dispensa adjetivos e
melodrama. A maneira mais respeitosa, mais honesta e mais jornalística
de apresentá-lo é apenas com o objeto da notícia: as pessoas que
morreram, as que enterraram seus mortos, as que estão chorando, as que
estão buscando fazer justiça, e mesmo as que causaram tudo.
O horror fala sozinho, sem cenários, maquiagem nem trilha sonora. A
narrativa melodramática tem seu lugar no imaginário social, mas é na
novela, e não no programa que vem logo antes. (...)
Fonte: Observatório da Imprensa
Grêmio e Corínthians
Há 11 anos
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